Anistia 'light': Hugo Motta adota texto de Crivella e Câmara acelera votação

Anistia 'light': Hugo Motta adota texto de Crivella e Câmara acelera votação
18 setembro 2025
bruno Recke 0 Comentários

O que está em jogo: o texto que Hugo Motta quer levar a voto

A Câmara dos Deputados apertou o passo. Por 311 a 163, com 7 abstenções, os deputados aprovaram o regime de urgência para a proposta de anistia light articulada pelo presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos), a partir de um projeto apresentado em 2023 por Marcelo Crivella (Republicanos-RJ). Com a urgência, o tema pode ir direto ao Plenário, sem passar por comissões, em data ainda a ser definida.

O desenho que ganhou força é mais restrito do que uma anistia ampla. A ideia é perdoar quem participou de atos com motivação política ou eleitoral entre 30 de outubro de 2022 (data do segundo turno) e a publicação da lei. O texto alcança não só quem esteve nas ruas, mas também quem apoiou de outras formas: doações, logística, prestação de serviços e publicações em redes sociais. Prevê ainda cobrir crimes do Código Penal que estejam conectados a essa motivação.

Há um ponto sensível: os articuladores falam em não incluir lideranças e condenados por articulação golpista — aliados citam que figuras de maior comando não seriam beneficiadas. Na prática, seria uma anistia “limitada”, desenhada para passar pelo Senado e evitar choque frontal com o Supremo Tribunal Federal (STF). O alvo são os elos mais baixos da cadeia dos atos, não o topo.

Hugo Motta trabalha para transformar o texto de Crivella na espinha dorsal de um acordo maior. Além do perdão a parte dos casos, negociadores discutem reduzir penas aplicadas e ajustar trechos da lei que trata dos crimes contra o Estado Democrático de Direito (Lei 14.197/2021). Entre as ideias na mesa, aparecem a conversão de penas em alternativas, critérios mais claros para diferenciar quem financiou de quem organizou e ajustes nos tipos penais para delimitar o que é manifestação e o que é ataque à democracia.

Essa calibragem virou prioridade porque há uma massa de processos ainda em curso e decisões já proferidas pelo STF, em graus e contextos diferentes. O Congresso tenta responder a pressões de familiares e advogados de réus que alegam punições desproporcionais, enquanto enfrenta resistência de parte da sociedade civil e do Judiciário, que enxergam risco de sinalizar tolerância com violência política.

O tabuleiro político e os obstáculos jurídicos

O tabuleiro político e os obstáculos jurídicos

No Planalto, a posição é clara. Em entrevista à BBC, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou: “Se chegasse para eu vetar, pode ter certeza de que eu vetaria”. O recado complica a costura na Câmara e no Senado. Para derrubar um veto presidencial, o Congresso precisa de maioria absoluta nas duas Casas em sessão conjunta — 257 deputados e 41 senadores. A aprovação da urgência mostrou força no Plenário, mas manter coesão num tema sensível costuma ser mais difícil.

O STF também já deu sinais firmes. Pelo menos seis ministros — Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Gilmar Mendes, Luiz Fux, Dias Toffoli e Cármen Lúcia — se manifestaram publicamente contra a ideia de um perdão que alcance crimes ligados aos ataques de 8 de janeiro. Se a lei avançar, é esperada uma enxurrada de ações diretas de inconstitucionalidade. O debate jurídico passará por princípios como separação de Poderes, proteção ao Estado Democrático de Direito e vedação de anistia a condutas que atentem contra a ordem constitucional.

Há outro componente técnico: a retroatividade de uma anistia que atinja processos em curso e decisões já transitadas em julgado. Em termos práticos, quem seria beneficiado? Apenas investigados e réus sem sentença definitiva? Quem já cumpre pena poderia migrar para regime aberto ou ter extinção da punibilidade? Sem texto final, essas respostas ainda são suposições. Por isso a pressão para que o relatório detalhe filtros objetivos — como exclusões por liderança, violência grave, dano ao patrimônio público e financiamento estruturado.

No Senado, a resistência é menos barulhenta, mas real. Senadores de diferentes campos dizem, reservadamente, que aceitam discutir uma saída para casos menores, porém rechaçam um “apagão” geral. A leitura é que qualquer passo visto como indulgência com vandalismo terá custo político alto, especialmente em ano pré-eleitoral.

Paralelamente, entidades jurídicas e acadêmicos pressionam por critérios claros. Um grupo defende distinguir o manifestante que agiu sem violência e sem financiamento de quem planejou e financiou ataques. Outro alerta que já existe no ordenamento margem para atenuar penas caso a caso, sem recorrer a anistia, por meio de recursos, revisões criminais e aplicação de atenuantes previstas no Código Penal.

Os números ajudam a dimensionar a encrenca. Desde 2023, o STF recebeu milhares de denúncias e transformou mais de mil investigados em réus ligados aos atos antidemocráticos. Centenas já foram julgados, com penas que variam conforme a participação. Há também acordos de não persecução penal em situações de menor gravidade. O retrato é heterogêneo — e isso alimenta o argumento de que uma solução política precisa ser cirúrgica para não colidir com decisões judiciais bem fundamentadas.

O efeito prático de uma eventual aprovação seria imediato. Anistias, por definição, têm aplicação retroativa e extinguem a punibilidade. Um perdão com redação ampla poderia paralisar processos e desencadear pedidos de soltura e revisão de pena em série. Por isso o cuidado em manter exclusões e amarras no texto, mirando casos de baixa lesividade e sem comando, ao mesmo tempo preservando a responsabilização de quem planejou e executou os ataques ao coração das instituições.

Politicamente, o tema reabre uma disputa de narrativas que já dura quase três anos. Para a base governista, anistiar quem participou de atos com viés antidemocrático envia o recado errado. Para a oposição, punir de forma igual todo mundo que esteve nos entornos dos protestos — inclusive quem não quebrou nada — é injusto e alimenta ressentimento. No meio do caminho, há parlamentares tentando construir uma válvula de escape para pacificar o ambiente, mas sem ferir o núcleo da responsabilização.

Os próximos passos dependem do tamanho do consenso que Hugo Motta conseguir montar. Se houver acordo mínimo, o texto vai a voto ainda neste semestre. Sem isso, a urgência aprovada vira só um atalho procedimental — útil, mas insuficiente. E, mesmo que passe na Câmara, a proposta terá de atravessar o Senado, enfrentar um provável veto presidencial e, por fim, um crivo do STF. Ou seja, a “anistia light” só sai do papel se sobreviver a todas essas camadas de teste.

bruno Recke

bruno Recke

Sou jornalista com uma paixão por notícias diárias e escrevo sobre temas variados relacionados ao cotidiano do Brasil. Meu objetivo é informar e engajar meus leitores com artigos bem elaborados e relevantes.