Enquanto o cheiro de pão de queijo e pastéis começava a tomar conta das ruas de Itatiaiuçu, milhares de fiéis já se preparavam para a procissão mais aguardada do ano. A Festa de São Judas Tadeu — uma das celebrações mais profundas da devoção popular no Brasil — chegou ao seu clímax em duas cidades do sudeste: Itatiaiuçu, no interior de Minas Gerais, e Niterói, no Rio de Janeiro. Embora separadas por 400 quilômetros e culturas distintas, ambas as festas giram em torno do mesmo santo: o padroeiro das causas desesperadas, cuja memória é lembrada oficialmente pela Igreja Católica em 28 de outubro.
Itatiaiuçu: uma festa de onze dias com ritmo próprio
A Paróquia São Sebastião, em Itatiaiuçu, começou a celebração no sábado, 18 de outubro, com uma novena que se estendeu por onze dias — um pouco mais do que o tradicional. A programação foi meticulosamente planejada, com cada dia tendo sua própria alma. Na sexta-feira, 24, foi a vez da equipe da catequese conduzir as orações. No sábado, 25, o padre Friar Jacir, do Convento Santo Antônio em Divinópolis, presidiu a missa, com o coral de São Judas Tadeu cantando hinos que ecoaram pelas paredes da igreja. Logo depois, algo inusitado aconteceu: o lançamento da Bíblia Apócrifa, um livro raro, raramente publicado em eventos religiosos populares. Ninguém sabe exatamente por que foi escolhido — mas os fiéis dizem que é como se o santo estivesse abrindo portas invisíveis.Procissão e a noite que não termina
Na noite de 28 de outubro, às 19h (horário de Brasília), a multidão se reuniu em Rua Santo Antônio, no bairro Kennedy. Cada pessoa carregava uma vela, uma foto, um pedaço de tecido amarrado ao pescoço — símbolo de promessa. A procissão, lenta e silenciosa, caminhou até a Igreja São Judas Tadeu. Lá, o Friar Gilberto, da Convento Santa Maria dos Anjos em Betim, celebrou a missa principal. Quando o último amen foi dito, as barraquinhas acenderam as luzes. Pão de queijo, empadão de frango, caldo de cana. O cheiro de canela e azeite de dendê tomou conta do pátio. Ninguém queria ir embora. Alguns ficaram a noite inteira.Niterói: tradição que não se apaga
Enquanto isso, em Niterói, a festa era outra. Menos estruturada, mais espontânea. As duas paróquias dedicadas a São Judas — uma no Icaraí, bairro rico e próximo à praia, e outra no Rocha, área popular junto à Estrada da Cachoeira — abriram as portas desde 19 de outubro. O jornal A Tribuna RJ chamou o evento de “uma das mais tradicionais da cidade”. E não é exagero. Em Icaraí, fiéis chegavam antes do amanhecer. No Rocha, o som de instrumentos caseiros e coros de idosos se misturava ao barulho dos bondes passando na avenida.Não há grandes nomes de bispos ou cardeais aqui. Os padres são locais, anônimos, mas conhecidos. As mulheres que levam flores, os homens que carregam os andores, os adolescentes que distribuem água e pão — todos são parte do ritual. A festa em Niterói não tem lançamento de livros, nem corais profissionais. Mas tem algo mais valioso: continuidade. Gerações inteiras cresceram com essa devoção. Avós contam histórias de promessas cumpridas. Mães ensinam aos filhos a rezar o terço de São Judas antes de dormir.
Por que São Judas Tadeu? O que move as multidões?
A resposta não está nos livros de teologia. Está nos rostos cansados, nas mãos trêmulas, nas cartas amassadas que são deixadas nos pés da imagem do santo. São Judas é o último recurso. O santo que ninguém esquece quando tudo mais falhou. Um emprego que não vem. Uma doença que não passa. Um filho que se perdeu. Em Itatiaiuçu, uma mulher de 72 anos disse ao repórter: “Eu rezei por três anos por minha neta. Hoje ela está curada. Vim pagar a promessa. Não importa se é noite ou dia — ele me ouve.”Em Niterói, um jovem de 21 anos, que perdeu o pai há dois anos, levou um bilhete com o nome do pai escrito à mão. “Se ele me ajudar a encontrar um emprego, eu prometo que vou ajudar outras pessoas”, disse ele, enquanto colocava o papel entre as velas.
As diferenças que unem
Itatiaiuçu, com 38 mil habitantes, vive uma festa que transforma a cidade inteira. Niterói, com meio milhão, tem a festa como um dos muitos pilares de sua identidade religiosa. Mas ambas compartilham o mesmo núcleo: a crença de que o divino pode entrar na vida cotidiana — por meio de uma missa, uma vela, uma promessa.As organizações envolvidas são distintas: em Minas Gerais, os freis do Convento Santo Antônio e de Santa Maria dos Anjos atuam como celebrantes. Em Niterói, a arquidiocese local coordena tudo. Não há ligação entre as duas festas. Mas há uma conexão invisível: a mesma fé, repetida em tons diferentes, em cidades que não se falam, mas que, em 28 de outubro, respiram juntas.
Como será o próximo ano?
As datas já estão marcadas: 17 de outubro para Itatiaiuçu, 18 de outubro para Niterói. As equipes de catequese já estão treinando os corais. As barraquinhas já reservam os fornecedores de queijo e farinha. Em Niterói, a prefeitura promete reforçar a segurança nas ruas. Em Itatiaiuçu, o padre local já disse em entrevista: “Vamos manter a Bíblia Apócrifa. E quem sabe, no ano que vem, uma exposição de fotos das promessas cumpridas.”Enquanto isso, os fiéis já começam a planejar. Não para a festa. Para a promessa.
Frequently Asked Questions
Por que a Festa de São Judas Tadeu começa em datas diferentes em Itatiaiuçu e Niterói?
Cada paróquia organiza sua novena de forma independente. Itatiaiuçu começou em 18 de outubro, com 11 dias de celebração, incluindo o dia da festa. Niterói começou em 19 de outubro, com 10 dias, seguindo o modelo mais comum. Isso ocorre porque não há uma padronização nacional — cada comunidade decide seu ritmo, conforme tradição local e disponibilidade dos padres.
O que é a Bíblia Apócrifa e por que foi lançada na festa de Itatiaiuçu?
A Bíblia Apócrifa reúne textos não incluídos no cânon oficial da Igreja Católica, mas considerados importantes por algumas tradições. Seu lançamento em Itatiaiuçu foi uma iniciativa local, provavelmente ligada à busca por profundidade espiritual. Embora controversa, a escolha reflete a curiosidade religiosa da comunidade, que busca além do tradicional — algo raro em festas populares.
Quem são os freis Jacir, Pedro e Kelisson, e por que eles participam da festa?
Frei Jacir e Frei Pedro são membros do Convento Santo Antônio em Divinópolis, e Frei Kelisson pertence ao Convento Santa Maria dos Anjos em Betim. Ambos são da Ordem dos Frades Menores. Eles são convidados por paróquias menores que não têm padres suficientes. Sua presença traz autoridade espiritual e reforça a ligação entre comunidades religiosas em Minas Gerais.
Por que a procissão em Itatiaiuçu começa às 19h?
O horário foi escolhido para permitir que trabalhadores e famílias participem após o expediente. Também é uma tradição ancestral: a noite é vista como momento de maior proximidade com o divino, quando o silêncio e a escuridão amplificam a oração. Em muitas cidades mineiras, procissões noturnas são mais intensas — o luar é considerado um símbolo da graça.
O que acontece com as promessas feitas durante a festa?
As promessas são guardadas com reverência. Muitas são escritas em papéis e deixadas na igreja. Outras, como pinturas, velas ou até mesmo doações de alimentos, são entregues aos padres. Algumas comunidades mantêm um “livro das promessas” — um registro oral e escrito que se torna parte da história local. Quem cumpre a promessa volta no ano seguinte — e muitos voltam com seus filhos, tornando a devoção uma herança familiar.
Há estimativas de quantas pessoas participam das festas?
Nenhuma estimativa oficial foi divulgada. Em Itatiaiuçu, a população é de cerca de 38 mil, mas a festa atrai pessoas de até 15 cidades vizinhas — o que pode elevar o público para mais de 50 mil. Em Niterói, os fiéis vêm de toda a região metropolitana, mas o número exato é desconhecido. O que se sabe é que, em ambos os lugares, igrejas e praças ficam lotadas, e o trânsito é interrompido por horas.